Práticas da História Nº 9
Jan 18, 2020 | 2019, Edições, Revista Práticas da História
Práticas da História – Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past
- 2019
- Número 9
- ISSN: 2183-590X
- Tema: António Hespanha. Fazer e desfazer a história
Editorial:
O vazio criado pelo recente desaparecimento de António Manuel Hespanha (1945-2019) tem vindo a ser preenchido por obituários publicados em revistas académicas internacionais, que se somam às notícias que a imprensa portuguesa produziu na hora da sua morte. O colectivo que tem dirigido a revista Práticas da História gostaria de começar por referir que o seu falecimento nos entristece e enfraquece. Desde o início desta revista que António Hespanha nos ajudou generosamente. Fez parte do conselho científico da revista e elaborou pareceres sobre artigos. Foi orador em eventos por nós organizados e participou do público de outros eventos que realizámos. Trouxe às páginas desta publicação uma nova versão de um dos seus ensaios teóricos mais relevantes (o seu texto sobre categorias) e, a nosso pedido, redigiu um testemunho sobre a sua experiência à frente da Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. De resto, o evento de lançamento do nosso primeiro número, que teve lugar na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, teve como ponto alto a realização de uma entrevista a António Hespanha, numa sala plena de colegas e estudantes que ali foram expor-se à experiência de quem fazia da sua própria erudição uma forma de instigar a curiosidade dos demais – e não um fardo a pesar sobre a ignorância alheia. O registo áudio dessa entrevista ocorrida em 2015, e conduzida pelo historiador Luís Trindade, ficará doravante disponível no site da nossa revista.
A ideia de organizarmos um dossier em torno da obra de António Hespanha não decorre apenas da estima que ele nos merece. Sendo certo que a Teoria da História e a Historiografia não se contam entre as áreas que directamente mais beneficiaram dos seus contributos, Hespanha escreveu alguns ensaios seminais sobre questões que interpelam a prática da disciplina e o desempenho do ofício de historiador em geral. Mais acontece que muitas das suas obras, ainda que versando sobre matérias específicas (da história do Direito à história do Estado, passando pela história do Império), acusam uma autorreflexividade que assumiu forte vocação teórica, como se fazer História e desfazer a História formassem parte de uma mesma tarefa intelectual, para glosarmos o lema que presidiu à revista Penélope, fundada em 1988 e de que António Hespanha foi director. Como este lema se foi materializando na trajectória de Hespanha, eis uma questão que fica para a agenda de um futuro programa de investigação no domínio da história da própria disciplina. Neste editorial, não cabe certamente a definição de um tal programa, que poderá vir a considerar questões tão diversas como o encontro de Hespanha com as perspectivas foucauldianas, o seu entusiasmo com as possibilidades que a informática trouxe à pesquisa empírica, a tensão entre a crítica da História enquanto discurso apaziguador do presente e a assunção de elevadas responsabilidades dirigentes ao nível das políticas de memória do Estado português nos anos 1990; ou ainda, na última década, as implicações da afirmação do chamado neoliberalismo na sua aproximação à questão do Estado.
Da nossa parte, limitamo-nos aqui a sugerir que a preocupação científica que levou Hespanha a equacionar as possibilidades e limites do conhecimento produzido pelos historiadores se combinou, não raras vezes, com a inquietação cívica que o levou a reflectir sobre as vantagens e desvantagens políticas da disciplina da História para a vida em comunidade. De tais combinações é exemplar a sua intervenção num dos debates suscitados pela publicação daquele que foi, porventura, o seu livro mais importante: As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – século XVII. Num desses debates, escreveu:
«Um dos objectivos centrais do meu trabalho de historiador do poder é o de combater esta forma de cronocentrismo que consiste em projectar sobre o passado as nossas categorias de entendimento do poder, tomando como naturais e intemporais as categorias actuais de compreensão das relações de poder. Tal operação epistemológica tem várias consequências, a meu ver indesejáveis. Uma delas é de natureza historiográfica, traduzindo-se num desconhecimento da ideia de “ruptura”, de distanciamento histórico, a que a actual teoria da história dá tanta atenção. Outra consequência é de natureza político-ideológica, pois a elevação do conceito de “Estado” a uma categoria intemporal – e, paralelamente, da organização política estadual a uma aquisição final, escatológica, preparada pelo aparecimento de formas “estaduais” ainda imperfeitas (como o “Estado medieval” ou o “Estado moderno”) – conduz a uma “naturalização” das formas políticas actuais e à sua legitimação como o ómega da evolução dos sistemas de poder».
Pelos mesmos anos, de resto, no ensaio «A emergência da História», publicado na já referida Penélope, o desdobramento historiográfico e político-ideológico da operação epistemológica realizada em As vésperas do Leviathan ganharia uma formulação genérica, com Hespanha a assumir o discurso de historiador «como um acto político», mas logo precisando que tal politicidade nada tinha que ver «com a história “militante” ou a história “cidadã” de há vinte ou trinta anos». Citando-o, de novo:
«Há vinte ou trinta anos, o ofício do historiador tinha um sentido militante porque a história, concebida como ciência, pretendia poder captar as “leis sociais” que regulavam o processo histórico e asseguravam um futuro mais livre e mais humano. Fazer história era documentar, com a plasticidade e acessibilidade que o relato histórico garante, aquilo que, sem ele, apenas poderia ser apreendido em enfadonhos manuais de teoria social. Formava-se, assim, uma espécie de “frente popular” em que a história (tal como a literatura [neo-realista]), sob a direcção da teoria social, garantia a formação de um “bloco social” em que participavam mesmo aquelas [disciplinas] que, pela teoria “pura e dura”, [para tal] não tivessem grande apetência. Então, a historiografia era política pelo seu conteúdo. Mas, pela sua forma, pelo seu referente epistemológico (a Verdade), estava acima da política, tanto quanto a matemática.»
O dossier «António Hespanha – Fazer e Desfazer a História» reúne seis contributos da autoria de historiadores, cientistas sociais e estudiosos do Direito. Uma parte dos textos testemunha o encontro dos respectivos autores quer com a obra de António Hespanha quer com a sua persona académica, ao mesmo tempo que desvela o modo como as perspectivas do historiador português se manifestaram em campos historiográficos que não o português. Os textos das historiadoras Tamar Herzog e Mónica Duarte Dantas são disso exemplo, no primeiro caso esboçando-se uma visão panorâmica sobre os principais elementos que a obra de Hespanha trouxe a uma nova história do Direito; no segundo, deixando entrever a repercussão de Hespanha entre historiadores brasileiros. Por sua vez, o testemunho do historiador espanhol Bartolomé Clavero convoca, desde logo, a cumplicidade de leituras e vivência que sustentou os paralelismos intelectuais que é frequente estabelecer-se entre o percurso historiográfico de ambos, Clavero e Hespanha, de caminho informando-nos acerca da repercussão da obra deste último na historiografia espanhola, onde, na verdade, a sua tese de doutoramento conheceu a sua primeira edição em livro.
O dossier reúne igualmente três outros contributos. O filósofo Giovanni Damele atende à importância que o estudo da argumentação e da retórica jurídica assumiram na prática historiográfica de Hespanha, ao mesmo tempo que sublinha os pressupostos cívicos que pautaram uma tal orientação e que igualmente se repercutiram em iniciativas lectivas desenvolvidas por Hespanha no âmbito da Faculdade de Direi-to da Universidade Nova de Lisboa. Já os contributos do historiador Tomás Vallera e do sociólogo Tiago Ribeiro surgem na sequência das leituras de Hespanha que ambos realizaram no quadro das respectivas investigações de doutoramento. Nos dois casos, trata-se de obrigar a obra de Hespanha a frequentar domínios ou cronologias que ela visitou menos regularmente. Vallera, que defendeu a sua tese de doutoramento neste mesmo ano de 2019, dá-nos conta da sua tentativa de elaborar uma história da «polícia» como genealogia da escola moderna. Por seu turno, Ribeiro investiga o modo como a conceptualização da sexualidade opera na influência recíproca do Direito e de saberes psi enquanto fontes de justiça e de verdade.
O presente número da Práticas da História começa, contudo, pela nossa habitual secção de artigos, à margem do dossier em torno de Hespanha. No primeiro artigo que publicamos, «Deus Vult? Crusade apologists, historians and ‘abortive rituals’ in the 1999 reconciliation walk to Jerusalem», o historiador Mike Horswell, atendendo à celebração dos 900 anos da Primeira Cruzada (1095-1099) e sua repercussão, reivindica a necessidade de os historiadores considerarem o que estas práticas memorialísticas colectivas nos dizem sobre os significados presentes de um dado passado, em vez de simplesmente procederem à verificação e validação do que nas celebrações de hoje estará ou não conforme à realidade de ontem. O segundo artigo, «Liberty dreamt in Stone: The (Neo)Medieval City of San Marino», é da autoria do historiador Tommaso di Carpegna Falconieri, que nos traz, em chave comparatista, uma primeira visão panorâmica sobre as práticas de medievalização desenvolvidas em San Marino de meados do século XIX até ao fim dos anos do fascismo italiano. Finalmente, publicamos um artigo do historiador Ricardo Noronha, «Neoliberalism and the historians», no cruzamento entre a História das Ideias Políticas, a História do Pensamento Económico e a Teoria da História, atento às reflexões historiográficas desenvolvidas nos primórdios do neoliberalismo por autores como Friedrich Hayek, Karl Popper, T. S. Ashton, Walter Eucken, Ludwig von Mises e Milton Friedman.
Completa, ainda, este número da revista, uma entrevista com Edward Alpers, na qual se aborda a trajectória pessoal deste historia-dor e o seu trabalho em contextos africanos de libertação nacional e de pós-independência, assim como os seus esforços na consolidação do campo de estudos sobre o Indian Ocean World. A entrevista foi conduzida pelo historiador Felipe Barradas Correia Castro Bastos. A revista inclui também, como é habitual, uma secção de recensões.
José Neves
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