Chamada aberta para a Práticas da História: Usos políticos do passado

Dez 15, 2021 | Sem categoria

Usos políticos do passado: memória pública da escravidão e do colonialismo

Prazo (propostas): 15 de Fevereiro de 2022

Editores convidados: Ana Lucia Araujo (Howard University) e Ynaê Lopes dos Santos (Universidade Federal Fluminense)

Nos últimos trinta anos, os debates em torno do passado escravista transatlântico e da colonização europeia da África e das Américas têm encontrado um terreno fértil no espaço público dos Estados Unidos da América, Brasil, França, Portugal, Holanda, Bélgica, Espanha, África do Sul, Senegal, Nigéria e República do Benim (Chivallon 2005, Chivallon 2012, Araujo 2014, Hourcade 2014, Fleming 2017, Moody 2020, Mattos 2020, Pachá e Krause 2020, Arantes, Farias e Santos 2021, Barreiros 2021). Desde 2013, com a ascensão do movimento #BlackLivesMatter nos Estados Unidos, e em 2015 com o movimento Rhodes Must Fall na África do Sul e na Inglaterra (Kwoba, Chantiluke, Nkopo, 2018), esses debates têm se acirrado ainda mais e se propagaram bem além da América do Norte. Se de um lado, ativistas e cidadãos racializados como negros (Otele, 2020) pedem a derrubada de monumentos homenageando supremacistas brancos ou estátuas comemorando indivíduos que defenderam a escravidão e a segregação racial (Domby, 2020, Cox 2021), indivíduos racializados como brancos também têm se organizado para defender os símbolos do passado escravista e colonial seja nas Américas, principalmente nos Estados Unidos ou na Europa (Araujo 2020).

Depois do assassinato de George Floyd em 2020, esses movimentos se espalharam por vários países europeus e, inclusive, africanos, onde homens e mulheres pediram a derrubada ou derrubaram com suas próprias mãos estátuas de homens brancos que defenderam a escravidão africana e indígena (Thompson 2022), traficantes de escravos como Robert E. Lee (Cox 2021), Edward Colston, Robert Milligan (Araujo 2020), James McGill e Borba Gato (Arantes, Farias e Santos, 2021). Manifestantes negros, brancos e indígenas também atacaram os monumentos homenageando os pais fundadores dos Estados Unidos que eram proprietários de escravos como George Washington e Thomas Jefferson e mesmo outras figuras, até então quase intocadas, que foram símbolos do colonialismo europeu como Cecil Rhodes, Winston Churchill (Elkins 2022) e Cristóvão Colombo (Thompson 2022).

Além da derrubada dos monumentos, a esfera pública foi tomada de outros debates e ações cada vez mais instigantes. Durante um período de polarização que emergiu com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, a comemoração da data simbólica 1619, que marcou a chegada dos primeiros africanos escravizados (devidamente documentada) na colônia da Virgínia suscitou uma onda de comemorações e também foi marcada pela publicação do Projeto 1619, um suplemento jornalístico do New York Times Magazine (recentemente publicado sob forma de um livro) visando recontextualizar a história dos Estados Unidos recentrando a escravidão e a contribuição dos Afro-Americanos como dimensão medular da história dos Estados Unidos (Hannah-Jones 2021). Logo após a publicação do suplemento alguns acadêmicos criticaram o projeto por erros factuais e por colocar “ideologia acima da compreensão histórica.” Com o apoio do New York Times, o Projeto 1619 teve uma ampla repercussão na mídia e seus idealizadores passaram a promover a distribuição do suplemento e sua introdução no currículo escolar das escolas estadunidenses, onde professores passaram a usá-lo para ensinar história da escravidão, das desigualdades raciais e a história do encarceramento em massa que atinge principalmente a população negra do país. Um outro grupo de acadêmicos brancos identificados com movimentos de direita lançou o Projeto 1776 com o intuito de promover ideais de “patriotismo e orgulho da história americana” e com o objetivo de atacar o Projeto 1619 e o que eles designaram como “teoria crítica da raça,” um amplo movimento intelectual que surgiu nos anos 1960 e que enfatiza que o ideia de raça é uma construção histórica, que o racismo é produto de sistemas legais e políticos.

Apesar das nuances específicas, debates similares têm se produzido em outros países das Américas, principalmente no Brasil com pseudomovimentos como o da “escola sem partido”, nos quais até mesmo o conceito de escravidão vem sendo questionado. Mas também se observa um movimento histórico e notório em reconhecer as heranças do passado escravista, o que ficou especialmente evidenciado com e eleição do Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, um processo longo, que envolveu um amplo debate público de diferentes setores sociais. A revisitação aos lugares de memória da escravidão também ganhou novo tônus na cidade de Salvador (Silva Jr. 2021), com o projeto Salvador Escravista. Tais questões encontram ressonância no crescimento do interesse do público leitor por autores negros e negras e por obras que debatam a questão racial no Brasil (um novo nicho editorial do país).

Na Europa, as batalhas da memória pública da escravidão e da colonização também têm ficado cada vez mais visíveis no espaço público (Elkins 2022). De um lado, esses debates se dão não somente em relação às remoções dos monumentos pro-escravocratas, mas também se manifestam no ensino da história da escravidão e do racismo (Araújo e Maeso 2016). De outro lado, enquanto vários museus norte-americanos e europeus tem abordado cada vez mais da história da escravidão (Araujo 2021), o papel desses museus tem sido tem cada vez mais sido questionado, pois suas coleções abrigam milhares de objetos saqueados durante as guerras de conquista do continente africano e durante o período do colonialismo europeu na África (Beaujean 2019, Hicks 2020). Várias nações africanas como a República do Benim, o Senegal e a Nigéria fizeram pedidos oficiais de repatriação dos objetos saqueados. Em alguns casos tais pedidos de restituição do patrimônio africano tem tido um certo sucesso. Em novembro de 2021, a França devolveu à República do Benim, 26 tesouros roubados pelas tropas coloniais durante a conquista do Daomé. Embora esses objetos correspondam apenas a uma ínfima parte dos artefatos saqueados, esse caso é um exemplo do possível sucesso de tais pedidos de repatriação.

Observa-se então que vivemos num momento ímpar, no qual a intersecção entre memória, passado escravista e colonialista e desigualdades raciais antes latente se torna cada vez mais visível.

Visando associar os debates da memória pública da escravidão e do colonialismo a partir de uma perspectiva transnacional e comparada, esse número da revista Práticas da História visa explorar os seguintes temas:

  • História e memória pública da escravidão
  • Construção e queda dos monumentos pro-escravocratas e coloniais
  • História e representações da escravidão e do colonialismo nos manuais escolares
  • Escravidão e colonialismo no museu
  • Recuperando a história e a memória da escravidão em iniciativas como construção de memória como o 1619 Project, Salvador Escravista, Passados Presentes e outros.

 

Propostas de artigos (500 palavras) em português, inglês, francês e espanhol, com estudos de caso específicos são particularmente bem-vindas.

Envie seu resumo até 15 de Fevereiro de 2022 para Professora Ana Lucia Araujo, aaraujo@howard.edu

Data limite para submissão de artigos a partir das propostas selecionadas: 30 de Junho de 2022

 

Referências

Araujo, Ana Lucia. Museums and Atlantic Slavery. New York: Routledge, 2021.

Araujo, Ana Lucia. Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past. London: Bloomsbury Academic, 2020.

Araujo, Ana Lucia. Shadows of the Slave Past: Memory, Heritage, and Slavery. New York: New York, 2014.

Araújo, Marta and Silvia Rodríguez Maeso. Os contornos do eurocentrism, raça, história e texto políticos. Coimbra: Almedina, 2016.

Arantes, Erika B., Juliana Barreto Farias e Ynaê Lopes dos Santos. “Dossiê: Racismo em pauta: A história que a história não conta.” Revista brasileira de História 41, no. 88 (2021): 15-32.

Barreiros, Inês Beleza. “Os murais do Salão Nobre: Documento do colonialismo ou o colonialismo (ainda hoje) em acção?” Público, 21 de Outubro de 2021, https://www.publico.pt/2021/10/21/opiniao/opiniao/murais-salao-nobre-documento-colonialismo-colonialismo-hoje-accao-1982038

Beaujean, Gaëlle. L’art de la cour d’Abomey : Le sens des objets. Paris : Presses du Réel, 2019.

Chivallon, Christine. “L’émergence récente de la mémoire de l’esclavage dans l’espace public : Enjeux et significations.” Revue d’histoire moderne et contemporaine, no. 52-4 (2005) : 64-81.

Chivallon, Christine. L’esclavage, du souvenir à la mémoire : Contribution à une anthropologie de la Caraïbe, Karthala, Paris, 2012.

Cox, Karen. No Common Ground: Confederate Monuments and the Ongoing Fight for Racial Justice. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2021.

Domby, Adam H. The False Cause: Fraud, Fabrication, and White Supremacy in Confederate Memory. Charlottesville: University of Virginia Press, 2020.

Elkins, Caroline. Legacy of Violence: A History of the British Empire. New York: Knopf, 2022.

Fleming, Crystal Marie. Resurrecting Slavery: Racial Legacies and White Supremacy in France, Temple University Press, Philadelphia, 2017.

Hanna-Jones, Nikole. The 1619 Project: A New Origin Story. New York: One World, 2021.

Hicks, Dan. The Brutish Museums: The Benin Bronzes, Colonial Violence, and Cultural Restitution, Pluto Press, London, 2020.

Hourcade, Renaud. Les ports négriers face à leur histoire : Politiques de la mémoire à Nantes, Bordeaux et Liverpool, Daloz, Paris, 2014.

Roseanne Chantiluke, Brian Kwoba, e Athniangamso Nkopo, Rhodes Must Fall: The Struggle to Decolonise the Racist Heart of Empire, org. London, Zed Books, 2018.

Mattos, Hebe. “O que documenta um monumento?”, Conversa de historiadoras, 21 de Junho de 2020, https://conversadehistoriadoras.com/2020/06/21/o-que-documenta-um-monumento

Moody, Jessica. The Persistence of Memory: Remembering Slavery in Liverpool ‘Slaving Capital of the World’, Liverpool University Press, Liverpool, 2020.

Otele, Olivette. African Europeans: An Untold Story, Hurst, London, 2020.

Pachá, Paulo e Thiago Krause. “Derrubando estátuas, fazendo história, O Globo, 19 Junho de 2020, https://oglobo.globo.com/epoca/cultura/artigo-derrubando-estatuas-fazendo-historia-24487372

Silva Jr., Carlos. “Monumentos e as memórias da escravidão no Brasil Contemporâneo,” 11 de Agosto de 2021, Portal Geledés, https://www.geledes.org.br/monumentos-e-as-memorias-da-escravidao-no-brasil-contemporaneo/

Silva Jr. Carlos. “Ômicron desperta olhar colonialista e faz Brasil esquecer elos com a África.” UOL Notícias, 1 de Dezembro de 2021, https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2021/12/01/omicron-desperta-olhar-colonialista-e-faz-brasil-esquecer-elos-com-a-africa.htm

Thompson, Erin. The Rise and Fall of America’s Public Monuments. New York: W. W. Norton, 2022.

 

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